sexta-feira, 27 de maio de 2011

O Fabuloso Milagre do Livro de Reclamações


Diz a minha mãe que meu narizinho empinado antevê na penumbra um "certain je ne sais quoi" de incontornável insatisfação (que regra geral se reflecte em resmunguice), especialmente quando estou sobre a contagem vertiginosa diária dos pêndulos de relógio, que teimam em avançar mais rápido do que deviam.

Em vésperas de entrega de I.R.S. (Imposto de Retenção Salarial) reparei que me faltava o código milagroso para efetuar o preenchimento da declaração eletrónica. Eram 14h, tinha de estar no Porto às 14h30 para uma reunião de trabalho, e de seguida teria de ir trabalhar para o estádio às 19h.

Nem hesitei, peguei no telefone e liguei para o apoio. Do outro lado da linha um senhor educado disse-me para não me preocupar e passar nas finanças locais com o meu nº de contribuinte e que me iriam atribuir um número provisório. Eram 14h10 e pensei, ainda consegues (também sou otimista, normalmente).

Consegui chegar às finanças às 14h25, não foi o meu melhor tempo, mas com a temperatura que estava não podia exigir muito mais. Tirei logo a senha, e fiquei super entusiasmada porque só haviam seis pessoas à minha frente. Como sempre, pensei isto vai ser num instante.

A grande maioria dos portugueses que leu o parágrafo anterior, deve ter esboçado um sorriso, e refletido, "coitada, já sei onde isto vai dar, horas de espera". Não devia ser assim, mas é. Cada vez que necessitamos de alguma coisa estamos tramadas... temos de andar com o saco de papelada atrás e fazer o exercício mental de "auto-capacitação" para intermináveis horas de espera.

A verdade é que não me iria importar de esperar o tempo que fosse preciso, não fosse a funcionaria permitir que o nº 81 passa-se à frente do nº 72. Se poderia acusar e revoltar-me com a falta de civismo, podia. Mas ao invés, prefiro revoltar-me com a falta de profissionalismo da senhora que o atendeu, esta sim poderia ter feito algo e não o fez, prolongou a minha estadia em mais 25min (tempo que o demorou a atender), sendo que no final, entre sorrisos, ainda lhe disse "veja se trata da sua papelada para não andar a perder tempo".

Mas os restantes pobres coitados puderam dispensar 25min para que vossa excelência fosse atendida, e não, o senhor não preenchia os requisitos para ser considerado prioritário (gravidez, acidentado...). Respirei fundo e "engoli o sapo", as aulas de yoga iam ser úteis aqui. A outra senhora atendia durante uma hora e meia a mesma pessoa, pergunto eu "Como é possível?". Dizia ela com olhar lamurioso para o ecrã em frente a ela "a culpa é do sistema, está sobrecarregado, e depois não funciona". Aí refleti quando algo do género me acontece (nos trabalhos de hospedeira faço secretariado), eu chamo a pessoa seguinte e vejo o que esta necessita, porque pode nem necessitar do dito "sistema". Mas aqui está a grande diferença entre um trabalhador do sector público e um do sector privado. No público, podemos ter este tipo de atitudes, no privado, somos despedidos, ou chamados à atenção por tal comportamento.

Como se ainda não bastasse, quando chegou a minha vez, o senhor que estava com "problemas do sistema do computador ao lado" veio para o meu e mais uma vez, fiquei a olhar, mas pensei está quase... eram 16h10. Finalmente sou atendida, peço o código e diz-me:

"— Não sei de que fala."
Que seria de mim se na minha profissão, quando um cliente se queixasse do espaço entre as linhas de texto, e eu lhe respondesse que não sabia do que falava porque o nome técnico é leading.

Em seguida, e após uma explicação do que queria...

"— Não lhe posso dar isso, tem de pedir por correio."
Expliquei-lhe que tinha efetuado uma chamada, e que no apoio, me tinham garantido que me dariam o tal código, uma vez que por correio não chegaria a tempo, para que pudesse preencher a declaração. A senhora que me atendeu mostrou-se reticente e ainda frisou:

"— Mas que tipo de rendimentos é que a menina tem?"
Nem respondi à pergunta, e repeti, preciso do código para preencher a minha declaração de I.R.S. online. Foi então que esta se levantou e trouxe a papelada para preencher, tem de haver sempre papel, muito papel, muitas assinaturas, muitos nomes, muitas datas. No final de tudo isto, diz-me com um sorriso à Eng. José Sócrates (megalómano cínico português do século XXI):

"— Não lhe posso dar nada, o seu B.I. está caducado, venha cá amanhã, ou para a semana."
Ora o prazo para entrega termina dia 30. Teria de milagrosamente tirar o B.I. a correr hoje e voltar para os serviços das finanças que fecham às 16h. E não poderia fazer mais nada durante o dia todo. Perdia a tarde de ontem e o dia de hoje. Essa ideia após duas horas de espera revoltou-me e pedi o livro de reclamações. E frisei:

"— Não se preocupe, a minha reclamação não será pelo B.I., porque aí até tem razão, mas sim por tudo o que se passou antes."

Posso dizer que a partir daí, um milagre aconteceu, e tudo mudou, inclusive trouxe o meu código comigo. Revolta-me ter de me revoltar, não gosto, fico triste. Mas que me resolveu o problema resolveu.

Deixo duas notas, esteve durante 1h30 uma senhora com um recém-nascido à espera de ser atendida, teve de o alimentar durante o período que lá esteve. Foi preciso outra senhora do departamento ao lado, pedir para a atenderem. 70% dos funcionários encontravam-se sentados a rirem-se em frente aos computadores para os quais apontavam. Existem diferenças significativas entre "bom ambiente de trabalho" e "brincadeira". É preciso começar a trabalhar, para tirar o país desta crise que nunca mais passa.

Ahhh... consegui chegar às 17h15 ao Porto.

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